quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

POETA SERTANIENSE LUIZ CARLOS MONTEIRO É O ENTREVISTADO DO SITE INTERPOETICA

Veja na íntegra a entrevista do poeta, crítico literário e mestre em literatura, o sertaniense Luiz Carlos Monteiro, concedida ao site interpoetica, dos meus amigos Cida Pedrosa e Sennor Ramos (RECIFE-PE).


Luiz Carlos Monteiro: inquietações existenciais que superam a mera “cor local”

Por Cristiano Aguiar

Fazer esta entrevista, que o leitor do Interpoética lerá abaixo, significou conhecer Luiz Carlos Monteiro duas vezes. Embora eu já acompanhasse seus textos críticos na revista Continente, dentre outras publicações para as quais escreve ou escreveu, nunca antes tinha encontrado este homem de fala suave, natural da cidade de Sertânia, no sertão de Pernambuco. Quieto, Luiz pouco diz de si, deixando o espaço aberto à sua palavra criadora. Talvez seja por causa disto que, só ao entrevistá-lo, fiz minha segunda descoberta: o crítico literário também era um bom poeta, revelando que crítica literária e poesia são faces diferentes do mesmo “comichão” da literatura, da mesma vontade de desafiar o mundo com versos e perguntas.Luiz Carlos Monteiro conversou com o Interpoética sobre tradição e valores literários, crítica universitária versus crítica acadêmica, a poesia de Carlos Pena Filho, bem como sobre sua própria poesia, profundamente arraigada nas cartografias da cidade – que pode ser Recife, Olinda ou qualquer cidade do mundo, pois ela nos aponta em direção a inquietações existenciais que superam a mera “cor local”.

Cristiano Aguiar: Vamos começar pela sua atividade como crítico literário. Você tem experiência nas duas linhas de frente: a crítica nos jornais e revistas e a crítica realizada a partir de pesquisas universitárias. Muitos afirmam que estas duas instâncias são inconciliáveis. Como é seu trânsito entre elas?
LCM: São duas instâncias que guardam peculiaridades e especificidades próprias, embora, num ou noutro caso, possam entrecruzar-se. Os espaços se tornam cada vez mais apertados nos jornais e revistas comerciais, por isto muitos críticos e ensaístas estão preferindo trabalhar textos mais longos, que somente caberiam em livro. É aí que entra a crítica universitária, que resulta da pesquisa paciente e persistente e destina-se, inicialmente, ao público da academia, i. e., a professores, estudantes e ouvintes que participam dos debates ali travados. Contudo, ensaios externos ao que se produz nas universidades devem trazer o possível ajuste metodológico, mesmo que tratem de temáticas subjetivas, abstratas, confessionais, metafísicas. Há professores que conseguem transitar bem nas duas modalidades: Carlos Newton Júnior, César Leal, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Hildeberto Barbosa Filho, entre muitos outros. No meu caso, venho tentando atender aos desafios que me propõem, sejam acadêmicos ou jornalísticos, mas não sei como medir ainda a eficácia ou não deste desempenho. Isto se vincula bastante à relação com editores, a convites e propostas editoriais que traduzam afinação entre as partes.

Na sua crítica, é importante dizer se uma obra é "boa" ou "ruim"? Quais são os seus parâmetros enquanto crítico?
Esta dualidade, típica e originária do impressionismo para a análise de obras, não deixa margem para o intermediário, onde se arrancha o mediano. Creio que a maioria das obras hoje se sustenta nesta categoria intermediária, de vez que há muito desapareceu a figura do gênio, e daí a ideia de genialidade. Avalio cada livro pensando na surpresa e no espanto que pode me causar. Feito uma espécie de impacto vital que me instigue e incite a fazer coisas, que me leve a uma reconciliação com o humano através de uma obra singular e a deserdar, mesmo que por tempo breve, a normalidade cotidiana. Sobre aqueles trabalhos situados fora de exigências estéticas mínimas e aceitáveis (rigor formal, predominância do poético ou do ficcional sobre uma suposta ou visível “mensagem”, equilíbrio narrativo sem excessos descritivísticos, presença da inventividade em poesia), prefiro não escrever.

Sua dissertação de mestrado fala da obra de Carlos Pena Filho. Como você o situa na literatura brasileira?
A dissertação tenta responder, de modo conciso, a esta questão. Carlos Pena Filho é herdeiro de 45, embora repudiasse essa geração através de entrevistas ou textos. Pode-se situá-lo na temporalidade dos anos de 1950, que é quando começa a publicar com mais intensidade. Foi um sonetista exímio, e manuseava outras formas como poucos do seu tempo. Seu nome é bastante conhecido no país, presente em antologias e histórias literárias, mas sua leitura é feita de passagem, até pela falta de edições significantes de sua obra.

Eu gostaria de fazer a você uma provocação: acho que Carlos Pena foi um poeta em formação, cujo amadurecimento foi interrompido pela sua morte. Você concorda ou discorda?
Penso que Carlos Pena Filho teve um processo rápido de amadurecimento. Aos 18 anos já assinava sonetos impecáveis. Reconhecia-se como um “artesão caprichoso”, o que invalida o aleatório em sua obra. Trazia aquela transpiração que a secura de quem não tem o que expressar rejeita. No seu breve tempo de vida construiu poemas de beleza e sentido únicos e inesquiváveis, que outros passam a vida intentando e não chegam jamais a concretizar.

Sei que é uma pergunta que vai demandar um fôlego maior, mas gostaria de perguntar para você qual a sua leitura das gerações de poetas que surgiram nas últimas décadas, aqui em Pernambuco. Quero destacar três momentos: a famosa e inesgotável Geração 65; o movimento dos poetas independentes, nos anos 70-80; a geração de jovens poetas surgidos a partir dos anos 90 e ao redor da antologia Invenção Recife (publicada nos 00), da qual fazem parte Delmo Montenegro, Fábio Andrade, Jacineide Travassos, Pietro Wagner, Micheliny Verunsk, entre outros.
Deste grupo de poetas surgidos a partir dos anos 90, conheço melhor a poesia de Micheliny Verunsk, pois fiz uma leitura mais apurada de trabalhos seus, e a considero uma poetisa que ainda pode voar bem alto. Li pouca coisa dos outros, mas aprecio a poesia espácio-visual e o experimentalismo que não força a mão. Delmo Montenegro, que escreveu estes versos, não pode esquivar-se à condição de poeta: “o mantra/ verde do meu ego/ e vermelho das minhas verdades/ ainda ninguém achou/ que faremos nós/ pistas deixadas/ em obras inacabadas/ de nenhum autor”. Neste trecho de poema há posicionamentos estéticos e existenciais de apelo corajoso e incidente sobre o fazer poético, sobre a repetição e a imitação, sobre o impasse do poeta ante tudo o que já se escreveu antes dele. No movimento independente, do qual fiz parte durante algum tempo, assumi o risco de certas vivências e ações perigosas e enviesadas, descambando às vezes para a gratuidade e a violência em nome de uma marginalidade radical, utópica e jamais alcançada. Ficaram nomes que atuam ainda hoje, com proposta subdividida e algo diferenciada, pois tanto publicam por editoras quanto em edições alternativas. Preservam, no entanto, a prática dos recitais: Cida Pedrosa, Valmir Jordão, Lara e Jorge Lopes, são exemplos disto. A geração 65 já tem alguns nomes reconhecidos entre os que se foram: Alberto da Cunha Melo e Arnaldo Tobias na poesia e Maximiano Campos na prosa. Entre os vivos, é impossível ficar indiferente à poesia de Jaci Bezerra, Almir Castro Barros, Lucila Nogueira, José Carlos Targino e Tereza Tenório, poetas de propostas bastante díspares, mas de uma forte persistência, o que significa que jamais torceram o nariz para o trabalho poético. Com relação à prosa, Raimundo Carrero e Fernando Monteiro são escritores inquietos, de bom alcance de público, e que ainda têm muito a contribuir para a literatura. Pernambuco ressente-se de mulheres ficcionistas, embora isto não signifique que não existam, apenas precisam de uma interferência e visibilidade maior no campo literário.

Nos últimos anos, uma série de feiras e festas literárias, como a Flip, A Letra e a Voz - Festival Recifense de Literatura, e a Fliporto, vêm dinamizando a vida literária brasileira. Qual a sua leitura deste fenômeno?
Debates, encontros, congressos sempre existiram. Hoje, no entanto, conta-se com um aparato forte da tecnologia da informação e com o apoio mais intenso dos setores público e privado. Até a década de 1980 a grande batalha era a publicação de um livro. A facilidade agora é imensa, inclusive pela concorrência no mercado gráfico-editorial, que tende a baratear os custos. E mais ainda, pelas formas de divulgação e publicação permitidas pela Internet. Em feiras e festas literárias ouve-se a voz de escritores mais de perto, contatos importantes podem ser veiculados, mitos são postos por terra, anônimos podem alcançar alguma visibilidade. A reciclagem de autores é coisa que não pode deixar de ser feita, pois o convite constante aos mesmos nomes cansa, entedia e desvaloriza os eventos.

Da mesma forma, nos últimos três anos ou quatro anos, em Pernambuco, uma série de jovens escritores procura se articular em torno de antologias, revistas e eventos literários: foi o caso, por exemplo, da Crispim, da Vacatussa e do Nós Pós e, agora, do coletivo Urros Masculinos, que vai organizar a Freeporto. Você consegue ver consistência nestas iniciativas? Os jovens escritores estão revelando conteúdo, além de articulação?
A geração 70 nasceu em bases contestatórias e hoje se encontra institucionalizada. A poesia “marginal” de Chacal é distribuída em todo o Brasil através de programas editoriais oficiais que envolvem as escolas públicas. Quando participei do movimento independente assumi posições ideológicas e editoriais radicais, mas tentando manter o diálogo com outros grupos – a Geração 65, os Poetas da Rua do Imperador, a vanguarda local neotropicalista. A articulação dos “novos” é sempre bem-vinda, pois elastece e dinamiza a ambiência literária. A consistência das iniciativas vai depender do “poder de fogo” de quem está à frente de tais movimentos. Chega uma época em que muita gente volta-se para as circunstâncias da vida pessoal, para o estudo mais sistemático, para o trabalho intelectual cotidiano e orgânico. Grupos fragmentam-se, outros se formam, o “novo e iconoclasta” de hoje passa a ser o “oficial e conformista” de amanhã. A questão do conteúdo do que escrevem os que estão chegando agora só pode ser avaliada com a passagem do tempo. Muito do que um autor escreve ou recita no calor do instante pode ser renegado por ele mesmo num futuro próximo. Quando um aspirante a poeta ou ficcionista descobre, depois do entusiasmo inicial, que sua poesia ou sua prosa não se ombreia a um Drummond, a um João Cabral, a um Murilo Mendes, a um Machado de Assis, a um Guimarães Rosa, a um Graciliano Ramos, para citar apenas alguns brasileiros, cai em si e perde toda a arrogância.

Você começa seu livro com os seguintes versos: “Não te evoco,/e também/o louvar não te quero (...) não te rejeito ou refuto, não te renego ou expulso”. Uma característica importante da sua poesia é a da crônica da cidade. Existe um Recife e uma Olinda “verdadeiros”? O poeta é aquele que abraça o real com a maior de todas as generosidades?
Os versos deste livro, Poemas, publicado em 1999, foram pensados e escritos a partir da segunda metade da década de 1970. O Recife era uma cidade onde a boemia corria solta, da Boa Vista ao Bairro do Recife, dos bares de Santo Amaro à zona da Rio Branco. O Beco da Fome ficava próximo ao Diretório Central dos Estudantes da UFPE, e depois das reuniões políticas aproveitava-se para beber. O Beco era frequentado por estudantes, intelectuais, policiais disfarçados, meninas liberadas e dispostas a tudo na noite. Foi nesse ambiente de muita agitação e embate que conheci os poetas independentes, os escritores da geração 65 e outras pessoas de quem fiquei amigo. Vez por outra, arranjava também alguns inimigos. Mas o beautiful people estava mesmo em Olinda, no Cantinho da Sé, no Querubim Bar e no Bar Atlântico, este último conhecido popularmente como Maconhão. Um Recife e uma Olinda autênticos eram os desse clima pós-adolescente, depois de 1976, quando entrei na universidade. Não sem patrulhamento ideológico conviviam a política, que era o real, com a poesia, identificada com o sonho, mas um sonho ainda de transformação da sociedade. E o poeta apostava qualquer coisa nesta luta, ao tempo, radical, seguindo em frente apesar das críticas conservadoras da família, dos amigos de infância e, num viés de teor mais ideológico de esquerda, dos próprios companheiros de partido ou tendência política, que repudiavam o sonho vinculado ao ato da escrita literária. O poema citado aparece na contramão dos poemas “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira e “Provocação do Recife", de Xico Sá.

Ainda falando do poema enquanto crônica da cidade e dos modos de viver na cidade: como evitar que o poema se torne apenas uma variação do fotojornalismo?
O poema urbano tem uma sedução implacável, pela capacidade de visualização dos objetos que permite. Fiz um esforço imenso para escrever alguns poemas nesta direção, pois minha inclinação sempre foi lírica, neo-romântica, confessional. E isto, apesar de ter feito quase todo o curso de Engenharia de Minas, e de ter formado, de quebra, com outros estudantes de engenharia, um grupo de discussão de Lógica Formal e Dialética. Ali, sustentados na intimidade do Cálculo Integral, da Geometria Analítica, da Álgebra Linear, da Física e da Química, ninguém contemporizava nem abria mão de suas opiniões e preceitos, embora, depois dos embates, fosse mantida a cordialidade possível. É preciso que o urbano traga a elaboração de um sentido estético, de um encanto que torne, até certo ponto, a leitura do poema dionisíaca, hedonista, prazerosa, anárquica. E não apenas a simples enumeração objetal. Talvez tenha sido por isso que Mário de Andrade chamou o poeta modernista Luis Aranha de “poeta ginasiano”. Mas, uma solução radical para que alguém se afaste do que você chama de fotojornalismo seria uma volta ao mundo da metafísica e do hermetismo, ao poema filosófico e ao lirismo confessional e intimista.

Nos poemas “Poema parco e tardio a Carlos Pena Filho” e “Poemeto muito antigo à maneira de Manuel Bandeira”, temos um duplo movimento: à crônica da cidade se junta a crônica da leitura. Em ambos, há morte espiando nos avessos... “resto de sombra” ou “negra lama enfim...”, do segundo poema, são contrapontos ao “Tua voz semovente em teu peito/com impulsão a cidade avançando”, versos do primeiro poema, que se referem a Pena Filho. Sua poesia também cumpre uma função semelhante à sua crítica, de fecundar de vida a tradição, às vezes um tanto esquecida, como é o caso da poesia de Carlos Pena? Como suas leituras alimentam o Luiz Carlos Monteiro Poeta?
Tenho uma gama de poemas metacríticos, dedicados a poetas de minha preferência: Murilo Mendes, Rimbaud, Baudelaire, Poe, Artaud, Torquato Neto, Fernando Pessoa, entre outros. Carlos Pena Filho é especialíssimo, poeta de quem gostaria de ter sido amigo. Foi poeta em tempo integral, boêmio, charmosamente triste, culto, simpático,voluntarioso e irônico. Quanto a minhas leituras, leio de tudo, inclusive muita ficção. Por exigências do trabalho crítico-analítico, especifico hoje mais essas leituras, privilegiando a teoria e a crítica literária, não dispensando, no entanto, o suporte dos textos históricos e filosóficos. Um texto crítico, daqueles de vertente mais criativa, pode incitar o poeta a escrever, num determinado momento, seu poema. Mas quem estimula e aprimora mesmo a escrita da poesia é a leitura da própria poesia, a aparição e consequente seleção daqueles poetas que, por vezes temporariamente esquecidos, podem vir à tona a qualquer instante com bastante força e vigor.

Há muita plasticidade em seus poemas, como é o caso de “O canavial flutuante ou visada do Rio Formoso” ou “Grafito em Olinda”. As artes visuais, a pintura, principalmente e, mais especificamente, a pintura de matriz moderna, são referências quando você compõe versos?
A arquitetura, a pintura, a visão mágica e áspera da Natureza do litoral ou da caatinga, as belas e funcionais construções urbanas, nos colocam no centro de um mundo plástico e visual. Convivi com alguns pintores e pintoras, e sempre acreditei que a pintura, assim como os arranjos musicais (e aqui discordo de João Cabral), mantém uma grande aproximação com a poesia. Mas, a pintura não é a principal referência na minha poesia, e sim uma delas. Os sentimentos mais recônditos ou explícitos que carrego, a tentativa de compreensão do outro, o imaginário de um mundo futuro e ainda possível porque não aconteceu em bases justas e solidárias, são referenciais importantes na poesia que faço.

Poemas como “Dois poemas sobre um motivo de Vielimir Khlébnikov” e “Poema autografado num envelope contendo uma fotografia amarelada” surgem de um eu lírico que fala a partir de uma posição solitária, na qual os sentidos da vida parecem estar em dissolução; mas o Outro, aquele que caminha na cidade, também é solitário: seus personagens são os bêbados, os cegos pedintes, os arlequins, os poetas soltos nas ruas – aqueles que não se “enquadram”. Gostaria que você comentasse isto.
Os dois poemas citados refletem a experiência cotidiana da solidão do poeta em seu quarto, a escrever e a ler desbragadamente, a sublimar amores impossíveis com o esteio e o auxílio luxuoso da literatura e com a inclinação clandestina, à época, do pensamento político. A vertente visionária dos personagens marginais e marginalizados é de origem baudeleriana, poeta que li demais e intentei absorver alguns temas e personagens malditos seus. O desajuste social destes personagens reflete algo do desajuste do próprio poeta, que teima, ou teimava, em não alinhar-se a vivências e situações flagrantes em que estivessem envolvidos os numerosos braços de polvo do status quo. Também num sentido de denúncia, sem a esperança ilusória de um grande alcance, ao modo de Neruda, Whitman ou Castro Alves, mas contribuindo, dentro de limitações próprias e às vezes reconhecíveis, para a consecução e dinamização do processo social e literário.


WELLINGTON DE MELO é escritor, professor & crítico da vida.
CIDA PEDROSA é poeta, advogada e editora do INTERPOÉTICA.

Nenhum comentário: